Carne
Carne é um projecto que pensa acerca da família e do seu fundamento político-ideológico. A família, olhada como estruturação identitária, acaba por mostrar a própria linguagem como estruturadora da existência, do pensamento, como reguladora dos afectos e comportamentos. Introduzem-se pequenas disrupções na estrutura familiar; um jantar de natal celebra o dia em que o verbo se faz carne, enquanto o movimento oposto vai acontecendo no dia-a-dia: o desaparecimento progressivo da carne até se tornar apenas verbo. O teatro empurrado à força para a pele impenetrável do vídeo; vidas selectivas desenhadas através de curadoria de imagens; o distanciamento que evita partilhar espaços, ar, corpos. Como é que a própria linguagem pode ser mais um destes ecrãs que descarnam a co-presença, que a filtram ou impossibilitam?
De que forma é que a estrutura familiar regula e define um cruzamento de laços e de ideias, palavras e conceitos, deixando para trás sangue e confusão e carne?
Carne estuda os corpos enquanto carne viva, procurando explorar diferentes gradações de encarnação e descarnação. Quanto recorremos ainda continuamente à dualidade mente-corpo? Como é que o quotidiano descarna as conversas, as relações? Como é que a carne disrompe na ordem do discurso que tende a colocá-la à distância? Como emerge a carne no discurso? O discurso é carne? A peça desenvolve-se nestas distâncias, procurando aproximar carne e palavra, às vezes, e ganhar espaço entre elas, noutras vezes, assumindo a consciência dorida de que a linguagem falha sempre, inevitavelmente, mesmo quando cria mundos com carne de palavras.
Escrito no âmbito da edição de 2021 da École des Maîtres – e explorando o tema A Palavra e o Corpo Ausente – CARNE trabalha sobre as incapacidades da linguagem: tanto a incapacidade da palavra ser corpo, carne, sentido – isto é, significar exactamente o que enuncia, numa coincidência total entre significante e significado –, como denunciando os usos de jogos de linguagem quotidianos, que procuram criar e conduzir formas de coexistencia, negociando constantemente distâncias de segurança entre falantes. Mas se, por um lado, a linguagem não chega, por outro lado, a linguagem sobra: mesmo se falha constantemente, também cria constantemente. Constrói mundos, feitos de palavras – ou com palavras. Esta peça procura ser um destes mundos, criando formas de existência em que palavra e performatividade se exigem mutuamente, encontrando apenas em cena a forma que lhes servirá de carne.
Carne is a project that aims to work on family and its political-ideological foundation. The family, seen as a structurer of identity, ends up showing language itself as a structurer of existence, of thought, as a regulator of affections and behaviors. Small disruptions are introduced into the family structure; a Christmas dinner celebrates the day verb becomes flesh, while the opposite movement takes place in everyday life: the progressive disappearance of flesh until it becomes just verb. Theater forced into the impenetrable skin of video; selective lives drawn through image curation; distancing that avoids sharing spaces, air, bodies. How can language itself be another one of those screens that strip away co-presence, filter it or make it impossible? How does the family structure regulate and define an intersection of ties and ideas, words and concepts, leaving behind blood and confusion and flesh?
Carne studies bodies as living flesh, seeking to explore different gradations of incarnation and descarnation. How much do we still continually resort to the mind-body duality? How does everyday life strip conversations, relationships? How does the flesh disrupt the order of speech that tends to put it at a distance? How does meat emerge in discourse? Is speech meat? The piece develops in these distances, trying to bring flesh and word together, at times, and gaining space between them, at other times, assuming the painful awareness that language always inevitably fails, even when it creates worlds with the flesh of words. Written within the scope of the 2021 edition of the École des Maîtres – and exploring the theme The Word and the Absent Body – Carne works on the incapacities of language: both the inability of the word to be body, flesh, meaning – that is, to mean exactly what itenunciates, in a total coincidence between signifier and meaning – as denouncing the everyday uses of language games, which seek to create and lead forms of coexistence, constantly negotiating safety distances between speakers. But if, on the one hand, language is not enough, on the other hand, language is too much: even if it constantly fails, it also constantly creates. Language builds worlds, made of words – or with words. This play seeks to be one of these worlds, creating forms of existence in which word and performativity constantly demand each other, finding only on stage the form that will serve them as flesh.