carta de agradecer
A quem possa interessar,
Está aí no escuro, à espera destas cartas. Nós, no escuro, esperámos muito para poder escrevê-las. A pena não corre sozinha; a caneta fura o papel com esforço; o teclado cobre-se de manchas invisíveis, de impressões digitais de mais de um par de mãos.
As nossas cartas confundem várias caligrafias.
Só quando as ler é que elas chegam a ser.
Quando tu as leres: posso tratar-te por tu?
Atenta na dobra deste papel invisível: o dedo que o vincou não foi só um, não foram só dez dedos. Ao desdobrares o papel ouves muitas caligrafias misturadas.
A Inês atenta. A Inês vê. A Inês atravessa o convento com calma, com cuidado. Sabe ser fundamental sem ter de ser necessária a todas as horas. Avisa quando é preciso aparar o lápis, cola selos sem ninguém ver. A Inês está nestas cartas.
A Joana é de papel ou, talvez, de tinta. Não tenho a certeza: a Joana tem segredos, pactos secretos que não se conhecem, só se imaginam. A Joana é uma sorte. Leu cartas em voz alta. Leu cartas em silêncio, sem dizer nada. Escreveu tudo. A Joana é um futuro. A Joana está nestas cartas.
A Mafalda cruza-se com inteligência, com ritmo de pensamento: estas cartas começaram como conversas compridas. Se olhares bem para dentro dos frascos, vais ver uma pinha secreta que lá está, e que é dela. A Mafalda está nestas cartas.
Com o Zé começámos a ler de ouvido: imaginamos-te, no escuro, a ouvir-nos dizer coisas que não sabemos escrever ainda; e com ele veio o Ricardo que, como todos os carteiros, deixa marcas nos envelopes.
A Catarina aprendeu a ler cartas ao contrário, reflectidas em espelhos: aprendemos assim muitas coisas novas. E escreveu a desenhar coisas com as mãos da Dona Ana e da Dona Rosa.
O Tiago trouxe luz para não lermos no escuro, que dá cabo dos olhos. As cartas mudaram de cor, ficaram transparentes. A Raquel escreveu em formas que não se tocam, que atravessam o espaço para dar as horas.
O Zé, o Ricardo, a Catarina, a Ana, a Rosa, o Tiago, a Raquel: estão nestas cartas.
Estas cartas também não chegam, porque se eu agradecesse ao Nuno tudo o que o Nuno faz ao ser Nuno havia de cair-me a mão, de tanto escrever.
Aprendemos com as mãos da Inês como é que se seguram as velas, as maçãs, os cabelos; com os olhos da Maria Inês vimos um bocadinho mais fora da cela. E tivemos casas no TUP, na CRL- Central Eléctrica e ainda as que a Sara nos ajudou a encontrar. E o cabelo da Marisa, que ainda está num frasco, em cima da minha estante. E a Mariana, que ainda poliu uns espelhos. O padre Paulo, do retiro de silêncio.
Nuno, Inês, Maria Inês, TUP, Central Eléctrica, Sara, Marisa, Mariana, Paulo estão nestas cartas.
Escrevemos cartas porque podemos escrever cartas, e também estão nestas cartas o Tiago Guedes e o Teatro Municipal do Porto, o Gonçalo Amorim e o FITEI, o município de Monção e a Filipa.
E as equipas do FITEI e do Teatro Municipal, que nos ajudaram a escrever, e a apagar, e a escrever, e a acabar.
A Luísa, o Paulo, o Luís, o Luís, o Carlos, o Luís, a Mariana, a Maria, aos Tundra, a Paola, a Sandra, a Rita, o Bruno, o Tadeu, a Inês, o José, as pessoas de quem não sabemos o nome.
O Gonçalo está nestas cartas, que já escreve comigo há tanto tempo, que as cartas até se confundem.
Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, a Mariana Alcoforado, Sierva María; Teresa de Ávila, Juana Inés de la Cruz, Elena da Cruz, Margarida de Jesus, Sor Sentiz, Santa Tareja, Marguerite Porete, Sancha Virgem, Santa Espinela, Santa Senhorinha, Margarida Dias, Maria do Céu, Beatriz de Nazareth, Gertrudes Margarida de Jesus, Brígida de Santo António, Adeodata de São Nicolau, Clara do Santíssimo Sacramento, Johannas de Ledes, Magdalena da Glória, Maria da Visitação, Violante do Céu, Virgínia Brites da Paixão, Vitória da Encarnação, Maria da Encarnação, Cecília Espírito Santo, Francisca da Coluna, Maria Ignácia, Catharina Rodrigues, Águeda Lopes, Acácia da Paixão, Maria da Cruz, Leanor do Espírito Sancto, Mécia da Conceição, muitas freiras de que nem sabemos o nome. A Maria Madalena!
Nestas cartas.
As 9 irmãs mártires: Livrada, Quitéria, Geniveva, Eumélia, Germana, Basilissa, Victoria, Marinha, Marciana e a sua guardiã Sita.
Nestas cartas.
As onze mil virgens estão nestas cartas.
Louise Bourgeois, as irmãs Brontë, as irmãs que escreveram teses e mais teses sobre freiras, o Gabriel García Márquez, o Deleuze, o Guattari, o Michel Foucault.
A Bíblia está nestas cartas.
As Santas que escolhemos e inventamos estão nestas cartas: a Joana d’Arc, a Emma Goldman, a Miley Cyrus, a Valerie Solanas, a Virginia Woolf e ainda mais.
As paredes de vidro do Kafka, da Sílvia Plath, da Olivia estão nestas cartas.
E os fantasmas que não sabemos nomear, mas estão nestas cartas.
Tu, no escuro, na plateia, no sofá: recebe estas cartas.
São tuas.
E da tua mãe e da mãe da tua mãe.
Raquel
(Abaixo, Teresa de Ávila a ouvir os assobios.)